I. RELATÓRIO:
Inconformada com o despacho de admissão liminar do processo especial de revitalização requerido por “AA”, a credora “BB” interpôs o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
O despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que indefira liminarmente o requerimento inicial apresentado pela devedora ACF, pelo seguinte:
I. No dia 21/05/2012, a devedora ACF – AA deu entrada em juízo do 1º PER, que correu seus termos no 3º Juízo Cível do extinto Tribunal de Braga, sob o processo no 36, plano esse que foi homologado por sentença datada de 20/11/2012.
II. Perante a iminência de ser requerida a sua declaração de insolvência por qualquer um dos seus credores, no dia 16/02/2015, veio a devedora, dar entrada de um segundo PER, o qual foi homologado por sentença de 09/07/2015.
III. Foi proferida decisão sumária pelo Tribunal da Relação de Guimarães decidindo pela inadmissibilidade e indeferimento liminar do segundo PER, em 18/06/2015.
IV. Não obstante a acima referida douta decisão, em 28/07/2015, foi proferida sentença pelo Tribunal a quo que homologou o 2º plano de revitalização, fazendo assim tábua rasa da decisão do Tribunal da Relação.
V. A devedora ACF incumpriu o plano de pagamentos a que se obrigou, quer no âmbito do 1º, quer do 2º PER.
VI. Face ao incumprimento do plano de pagamentos aprovado no 2º PER, e por forma a obstar à instauração de qualquer acção de cobrança de dívida, a devedora apresentou-se a um terceiro PER, em 05/09/2016.
VII. Quer o 2º quer o 3º PER correm seus termos na 2ª Secção de Comércio do Tribunal de Vila Nova de Famalicão, sendo por isso do Tribunal do juiz a quo, conforme aliás resulta de informação contida no despacho de que se recorre “a informação de que corre na 2ª Sec. Comércio – J1 um PER sob o n.o 139 em que é requerente a aqui devedora, instaurado em 07/02/2015, tendo sido proferida sentença homologatória do plano, a qual transitou em julgado em 18/08/2015″.
VIII. O artigo 612º do CPC consagra um princípio segundo o qual as partes não se podem servir do processo para conseguir um fim proibido por lei.
IX. O juiz do tribunal a quo, como guardião da legalidade, deveria e deve, averiguar se a devedora preenche os requisitos para utilização do processo especial de revitalização.
X. As normas contidas nos artigos 17º-A a 17º-I devem ser interpretadas de forma sistemática, sendo que os artigos conjugados 17º-A, n.o 1 e o n.o2 do 1º do C.I.R.E., devem ser interpretados como verdadeiros pressupostos processuais, só podendo recorrer ao PER as sociedades que preencham os requisitos aí referidos.
XI. O julgador não pode abster-se de apreciar liminarmente a petição inicial, devendo verificar, ainda que de forma indiciária, se os pressupostos estão preenchidos.
XII. A requerente deve comprovar na petição inicial a sua situação económica difícil ou de insolvência eminente, pelo que, o juiz deverá ter elementos suficientes para averiguar se estão preenchidos os pressupostos indispensáveis à utilização do procedimento.
XIII. No caso sub judice, verificando-se que não estão preenchidos os pressupostos legalmente exigíveis para o recurso ao PER, estaremos perante uma excepção dilatória inominada, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa.
XIV. Além de que, estamos ainda perante a excepção de caso julgado, posto que ocorre a tripla identidade, de sujeitos, pedido e causa de pedir, que refere o artigo 581º do CPC.
XV. Sendo as exceções dilatórias de conhecimento oficioso, deveria o tribunal a quo, ter conhecido das excepções e ter indeferido liminarmente a petição inicial, nos termos conjugados dos artigos 576º n.o 2, alínea i) do artigo 577º, 578º e 590º todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso por remissão do artigo 17º do C.I.R.E.
XVI. Verificando-se que não estão preenchidos os pressupostos legalmente exigíveis para a utilização do processo, deveria o Tribunal a quo ter indeferido liminarmente o requerimento inicial apresentado.
XVII. Acresce que a interpretação da palavra “imediatamente” contida no disposto no artigo 17º- n.o 3, não pode ser literal, pois tal implicaria um despacho de mera citação, em detrimento, sem qualquer razão de ser, da verificação da legalidade.
XVIII. O julgador deve ainda, sob pena de estar a praticar actos inúteis, fazer um juízo de prognose, verificando, com os elementos à sua disposição, se o fim último do procedimento, ou seja, a homologação do plano poderá proceder.
XIX. Admitir que o julgador deve abster-se de averiguar a legalidade do recurso ao procedimento em causa, está, por um lado, a admitir a violação pelo tribunal do seu dever de bem administrar a justiça e de evitar a prática de actos inúteis, e, por outro, a dar um consentimento tácito a uma verdadeira “fraude à lei”, a um notório abuso de direito, e ainda a permitir que uma parte faça um uso anormal do processo, solução que deve ser rejeitada, sob pena de estarem a ser violadas as normas contidas nos artigos 5.º, 6.º e 612.º todos do Código de Processo Civil.
XX. Tendo o julgador, ab initio, razões e fundamentos para recusar a homologação do plano nos termos do artigo 215.º e 216.º do C.I.R.E., deverá igualmente proferir despacho de indeferimento liminar.
XXI. No presente caso, é notório que a devedora ao recorrer ao PER, violou de forma não negligenciável, com as regras procedimentais aplicáveis ao PER, nomeadamente por desrespeitar os princípios contidos na Resolução do Conselho de Ministros, que devem ser acatados pela devedora por remissão do n.o 10 do artigo 17º-D do C.I.R.E.
XXII. Uma sociedade comercial que já beneficiou de DOIS planos especiais de revitalização, devidamente homologados e que não os conseguiu cumprir, não pode, sem culpa, desconhecer que qualquer plano que apresente, ab initio, já não será credível.
XXIII. Igualmente não pode, sem culpa, desconhecer que está a atuar em manifesto abuso de direito e fraude à lei.
XXIV. Logo, no presente caso é notório que o (eventual) plano jamais poderá ser homologado, quer pela aplicação do artigo 215º do C.I.RE., quer pela aplicação da alínea a) do n.o 1 do artigo 216º do C.I.R.E., uma vez que, grande parte dos credores, se não todos, ficarão, caso venha a ser aprovado novo plano, em situação previsivelmente menos favorável que actualmente, não se podendo esquecer que já foram anteriormente afectados nos seus direitos de crédito.
XXV. Não é admissível e resulta manifesta perversão da lei que uma sociedade comercial utilize o procedimento em causa pela segunda vez, ou terceira, ou quarta e por aí em diante, após ter beneficiado – e incumprido anteriormente o mesmo procedimento.
XXVI. A devedora, embora tenha tido no seu primeiro plano um perdão dos seus débitos e uma forma facilitada de pagamento, ainda assim não cumpriu com o mesmo, e, pelo contrário, abusivamente, não satisfeita com a primeira benesse, não só deixou de dar a sua contrapartida, como recorreu novamente ao mesmo procedimento em busca de novas benesses.
XXVII. Porém ao longo do procedimento beneficiou dos sucessivos PER´s para obter créditos que utilizou discricionariamente.
XXVIII. Não é admissível que uma sociedade recorra de forma indeterminada ao PER, por ser totalmente contrária e perversa ao fim do procedimento, pretendendo tão só de forma ilegal a exoneração do seu passivo em prejuízo dos demais credores e do tecido empresarial e social.
A devedora contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. OBJECTO DO RECURSO:
Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal.
No caso vertente, a única questão a decidir que ressalta das conclusões do recurso é a de saber se o juiz podia/devia indeferir liminarmente o processo especial de revitalização requerido pela recorrida, por esta não reunir os pressupostos materiais exigidos por lei para o recurso a esse processo, agir em manifesto abuso de direito e fraude à lei e ainda por se verificar a excepção de caso julgado.
III. FUNDAMENTOS:
Os factos
Com interesse para a decisão, mostra-se assente o seguinte circunstancialismo fáctico:
1 – Em 18 de Agosto de 2016, a firma “AA”, ora recorrida, requereu processo especial de revitalização, alegando que o cumprimento do plano aprovado e homologado judicialmente no âmbito de um outro PER por si anteriormente requerido se mostra comprometido devido a diversos factores, que discrimina, sendo certo que é ainda possível a sua recuperação;
2 – Nesse outro PER, que correu termos sob o n.o 139, foi aprovado um plano de revitalização, que veio a ser homologado por decisão transitada em julgado no dia 18 de Agosto de 2015;
3 – Antes desse, a recorrida requerera um outro (Proc. n.o 369) que foi igualmente concluído com a aprovação de um plano conducente à sua revitalização;
4 – Sobre o requerimento referido em 1) recaiu o despacho que se passa a transcrever:
“Face à declaração escrita apresentada pela Requerente e subscrita por um dos seus credores, declaro iniciado o presente processo especial de revitalização previsto nos arts. 17º-A e segs. do CIRE (com as alterações introduzidas pela Lei no 16/2012, de 20/4), relativo a Arlindo Correia e Filhos, S.A..
Nomeio, como administradora judicial provisória a sra. Dra. HH, por ter sido nomeada no anterior processo de revitalização que correu termos no J1 desta Unidade do Comércio (art. 17º-C, no 3, al. a), do CIRE).
Notifique o presente despacho à devedora, mais se cumprindo o disposto nos arts. 37º e 38º do CIRE (art. 17º-C, no 4, do CIRE).
Mais determino que a devedora dê cumprimento ao disposto no art. 17º-D, no 1, do CIRE, após notificação deste despacho.
Mais consigno que a devedora fica impedida da prática de actos de especial relevo sem que obtenha a necessária autorização do administrador judicial provisório (art. 17º-E, no 2, do CIRE).
VNF, d.s.”
O direito
O processo especial de revitalização constitui, como salientam Ana Prata, Jorge Morais de Carvalho e Rui Simões, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, 2013, página 53, “uma das principais novidades introduzidas no CIRE pela Lei 16/2012, de 20 de Abril“, cujo objectivo foi o de “alterar o espírito do regime, colocando a recuperação do devedor no centro das finalidades do processo, em detrimento da liquidação imediata do seu património, para satisfação dos credores“.
Inicia-se necessariamente por uma declaração do devedor e pressupõe que este ainda não se encontre numa situação de insolvência.
Ainda segundo os mesmos Autores, “tem na sua base um contrato, celebrado entre o devedor e um ou mais credores, nos termos do qual estes se comprometem a negociar no sentido de ser aprovado um plano de recuperação (…)“.
Nos termos do artigo 17º-C, n.o 3, alínea a), do CIRE, o juiz, ante a comunicação do devedor de que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação, deve nomear, de imediato, administrador judicial provisório.
É deste despacho de admissão liminar que vem interposto o presente recurso.
Sustenta a recorrente que a devedora não reúne os pressupostos exigidos por lei para desencadear o processo e age em manifesto abuso de direito e fraude à lei.
Sucede, porém, que, na esteira do decidido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Novembro de 2012, relatado por José Amaral, somos de opinião que o juiz, ao proferir o sobredito despacho, não tem que verificar a existência dos requisitos materiais de que depende o processo especial de revitalização, nem o seu eventual abuso.
Deve apenas, ressalvadas as hipóteses de recusa em casos marginais, certificar-se de que foi observado o formalismo legalmente prescrito.
Para além de ser o que se extrai da exegese literal da norma, esse é também o sentido que melhor se coaduna com a ratio legis, “na medida em que se pretendeu instituir um procedimento essencialmente extrajudicial, em que o controlo jurisdicional é mínimo” Autores e obra citados, página 58..
Acresce que se trata de um processo urgente, pelo que, como refere Maria do Rosário Epifânio, em “O processo Especial de Revitalização”, 2015, Almedina, pagina 23, “O juiz deverá proferir despacho de admissão do PER, exceto nas hipóteses residuais, mas incontornáveis, em que deverá recusar o pedido – apenas quando for manifesta a inviabilidade do pedido (p. ex. o devedor apresentou-se à insolvência, ou foi declarado insolvente, ou apresentou-se a um PER que terminou nos dois anos anteriores) (…)“, acrescentando que “o controlo dos pressupostos materiais será feito posteriormente (no despacho de homologação, ou em momento anterior, se o administrador judicial provisório suscitar a questão perante o juiz)“.
No mesmo sentido defendem Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, em “PER – O processo Especial de Revitalização”, Coimbra Editora, 2014, página 33, que “O juiz deve recusar a nomeação de administrador judicial provisório e encerrar o processo, em termos análogos ao disposto na alínea a) do n.o 1 do artigo 27º quando o PER seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente“, concluindo que “não compete ao juiz fazer uma análise preliminar sobre se o devedor se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda susceptível de recuperação, embora possa rejeitar o PER em caso de manifesta inviabilidade“.
Ora, no caso vertente é inquestionável que se mostram preenchidos os requisitos formais de que dependia a abertura do processo, pelo que a Senhora Juiz a quo não podia rejeitá-lo por não se verificarem os seus pressupostos materiais ou com base no seu uso abusivo.
Argumenta ainda a recorrente que o procedimento devia ter sido rejeitado, por se verificar a excepção de caso julgado.
Como excepção dilatória, o caso julgado é do conhecimento oficioso do tribunal e implica a absolvição do réu da instância (ou, se o processo estiver no início, o seu indeferimento liminar), de harmonia com o disposto, conjugadamente, nos artigos 576º, 577º, alínea i), e 578º, todos do Novo Código de Processo Civil, diploma que é aplicável subsidiariamente ao processo de insolvência por força da remissão contida no artigo 17º do CIRE.
Contudo, não pode olvidar-se que este processo – e, em particular, o processo especial de revitalização – assume especificidades que exigem alguma cautela no recurso subsidiário às normas e institutos próprios do processo civil.
Retornemos ao caso concreto.
É certo que este é o terceiro PER desencadeado pela devedora e que os dois anteriores terminaram com a aprovação e homologação judicial de planos de revitalização.
Parece igualmente lícito concluir que o primeiro desses planos não terá sido integralmente cumprido, tendo sido substituído pelo segundo, e a própria devedora admite que o cumprimento deste está irremediavelmente comprometido.
No entanto, é patente que não existe entre os vários procedimentos sucessivamente desencadeados a tríplice identidade pressuposta pela excepção de caso julgado (sujeitos, pedido e causa de pedir) nos termos do artigo 580º do NCPC, nomeadamente porque a situação económica da devedora e a composição do seu passivo não são imutáveis, sofrendo alterações ao longo do tempo, sendo certo que cada um dos planos vincula apenas os credores que poderiam ter reclamado os seus créditos no âmbito do procedimento onde foi aprovado, ficando, portanto, excluídos os créditos futuros e condicionais.
Acresce que o caso julgado, visando, por definição, evitar a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, é dificilmente conciliável com a natureza jurídica do plano de revitalização, já que este assume uma feição eminentemente contratual, sem prejuízo da sua abrangência ou carácter concursal, legitimados pelo controlo judicial.
A questão que se pode colocar é outra: a de saber quais as consequências jurídicas do incumprimento do plano de revitalização aprovado e homologado por sentença transitada em julgado e, conexa com essa, se pode ser desencadeado novo PER para modificar o plano de revitalização aprovado e homologado no âmbito de um anterior, entretanto incumprido ou cujo cumprimento seja inviável.
A lei é completamente omissa a respeito da primeira questão enunciada.
Na doutrina, as opiniões dividem-se.
Para alguns Autores é aplicável ao incumprimento do PER, por analogia, autorizada pela proximidade existente entre o plano de revitalização e o plano de insolvência, o regime previsto no artigo 218º do CIRE para o incumprimento deste último plano – nesse sentido, vide Maria do Rosário Epifânio, em obra citada, página 98, Catarina Serra, em “Entre o princípio e os princípios da recuperação de empresas”, II Congresso do Direito da Insolvência, Almedina, 2014, página 75, e Nuno Ferreira Lousa, em “O incumprimento do plano de recuperação e os direitos dos credores”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, 2015, página 140.
Em sentido contrário, com fundamento nas distintas finalidades dos processos, ali a recuperação do devedor, aqui a satisfação dos credores, opina Bertha Paredes Esteves, em “Da Aplicação das Normas Relativas ao Plano de Insolvência ao Plano de Recuperação Conducente à Revitalização”, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2014, páginas 277 e 278.
Já na jurisprudência localizamos apenas um acórdão que versou sobre as duas questões que nos ocupam.
Trata-se do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Fevereiro de 2016, onde, por aplicação analógica do citado artigo 218º e ainda com base num argumento histórico, retirado do regime previsto no CPEREF para a concordata, se considerou que não pode ser requerido novo PER depois de incumprido o plano aprovado e homologado no âmbito de um PER anterior Note-se que a decisão recorrida não era o despacho de admissão liminar do PER, mas a decisão de homologação do plano de revitalização aprovado..
Temos por líquido que se o devedor deixar de cumprir todas as obrigações constantes do plano, os credores poderão requerer a sua insolvência por se verificar o facto índice previsto no artigo 20º, n.o 1, alínea a), do CIRE.
Já será mais duvidoso que o possam fazer, ao abrigo do estatuído na alínea f) do n.o 1 do mesmo preceito, na hipótese de incumprimento meramente parcial, suscitando-se então a sub-questão de saber se podem ou não, na vigência de tal plano, executar os respectivos créditos (em sentido afirmativo, vide acórdão desta Relação de 21 de Janeiro de 2016, disponível em www.dgsi.pt).
Incontroverso é que o despacho de admissão de novo PER suspende as acções de cobrança de dívida, incluindo as de natureza executiva, pendentes contra o devedor e obsta à instauração de novas acções com idêntica finalidade e bem assim suspende as acções de insolvência em curso, salvo se a insolvência tiver sido requerida pelo próprio devedor (artigo 17º-E, números 1 e 6, do CIRE).
É também inegável que esses efeitos podem prejudicar os credores, designadamente aqueles que já tinham execuções pendentes, instauradas com base no plano anteriormente aprovado e homologado, ou se propunham instaurá-las.
Mas, existirá impedimento legal a que o devedor requeira novo PER? E, existindo, deve o juiz indeferir liminarmente o procedimento?
Mais uma vez inexiste norma expressa a regular a situação.
Será que isso significa que há lacuna da lei, a integrar por analogia, ou será que o silêncio do legislador foi intencional?
Como é sabido, só há lacuna quando se conclua, por interpretação do sistema legal vigente, que não foi prevista uma situação merecedora de tutela jurídica.
Os critérios de interpretação e integração das lacunas da lei encontram-se estabelecidos nos artigos 9º e 10º do Código Civil, no primeiro dos quais se consagra como princípio básico da hermenêutica jurídica o da reconstituição do pensamento legislativo (mens legis).
Ora, o legislador regulou, em dois preceitos sucessivos (artigos 17º-F e 17ºG do CIRE), os desfechos alternativos possíveis do processo especial de revitalização: a conclusão das negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor ou a conclusão do processo negocial sem a aprovação de plano de recuperação.
E, ao fazê-lo, previu a possibilidade de serem requeridos vários procedimentos desse tipo.
Todavia, apenas proibiu o devedor de recorrer a novo PER, embora limitado a um determinado período temporal (2 anos), quando o processo negocial termine sem a aprovação de um plano de recuperação (n.o 6 do artigo 17º-G do CIRE).
Nada disse sobre se, aprovado e homologado um PER por sentença transitada em julgado, pode ser requerido novo PER, seja porque aquele já tenha sido incumprido, seja porque entretanto se tenha revelado inviável o seu cumprimento.
Acreditamos que esse silêncio foi intencional. Estabelecendo apenas uma proibição transitória de recurso ao PER quando o devedor não obtenha, por parte dos credores, o consentimento necessário à aprovação de um plano de recuperação, o legislador optou por deixar em aberto tal possibilidade nas hipóteses restantes.
Mais. Atenta a origem e natureza jurídica do PER, compreende-se que assim seja.
Vejamos porquê.
Como salienta Catarina Serra, em “O Regime Português da Insolvência”, 5ª edição, página 174, o PER inclui-se entre os “processos híbridos“, assim denominados porque “Combinam uma fase informal (ou negocial) e uma fase formal (judicial), acumulando, portanto, as vantagens de uma e de outra“.
Nasceu, explica, para superar as dificuldades na obtenção de consensos entre os credores, cada vez “mais numerosos” e com “interesses económicos heterogéneos“, tendo por função económica “reduzir as resistências ou os bloqueios por parte de determinados credores (…)“, “por via da substituição da regra do consentimento individual, típica dos contratos, pela regra do consentimento colectivo, característica dos processos tradicionais de insolvência“. E, conclui, “a grande virtualidade do PER é a possibilidade, típica dos processos híbridos, de a homologação judicial tornar o acordo, posto que aprovado por uma maioria qualificada, vinculativo para todos os credores“.
A mesma ideia é sublinhada por Maria do Rosário Epifânio Obra citada supra, páginas 99 e 100., segundo a qual a dita abrangência ou carácter concursal “é legitimada pelo controlo judicial, máxime, pela sentença homologatória, que garante o controlo da legalidade do plano“.
No entanto, como assinala esta última Autora, o plano aprovado não deixa de ser um contrato, embora “especial“, por escapar “ao princípio da eficácia relativa, consagrado no art.º 406º, n.o 2 do Código Civil (…)”, vinculando todos os credores, mesmo os que votaram contra ele e os que não participaram no processo, e, como tal, encontra-se “sujeito à disciplina dos contratos (arts. 405º e ss. do Código Civil) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217º e ss. do Código Civil)“.
Ora, os contratos podem modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes (artigo 406º, n.o 1 CC).
Donde, também o plano de revitalização poderá ser substituído/modificado, nomeadamente quando, como vem alegado no caso em apreço, se mostre inviável o seu cumprimento por razões não imputáveis ao devedor.
Simplesmente, essa modificação terá de ocorrer em novo PER, dada a especificidade concursal deste Essa solução é admitida, embora com dúvidas, por Maria do Rosário Epifânio na obra referida na nota anterior, página 100.
.
E, abertas as negociações, caberá aos credores viabilizarem ou não a aprovação de novo plano, sem prejuízo do incontornável controlo judicial, já que o juiz poderá, por sua iniciativa ou a solicitação dos interessados, recusar a homologação do que porventura venha a ser aprovado, nos termos prescritos, conjugadamente, nos artigos 17º-F, n.o 5, 215º e 216º do CIRE.
Acresce que se o devedor se encontrar, após as negociações, em situação de insolvência, o encerramento do processo deve ser seguido, no prazo de 3 dias úteis a contar da data da comunicação do facto, pela declaração de insolvência, nos termos do n.o 3 do artigo 17º-G do CIRE.
Em suma, pensamos que, tendo presentes a finalidade e natureza do PER, não pode negar-se aprioristicamente, mormente em fase de despacho liminar, o recurso a novo procedimento, tendo em vista a substituição/modificação de plano anteriormente aprovado e que, segundo o devedor, se tenha vindo a revelar inviável.
Improcede, pois, a apelação.
IV. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
*
Guimarães, 2 de Fevereiro de 2017
João Peres Coelho
Relator
Isabel Silva
1º Adjunto
Fernanda Ventura
2º Adjunto
VOTO VENCIDO.
I. Concordo que no despacho inicial [art. 17º-C, no 3 al. a) do CIRE], não compete ao juiz entrar em apreciação de juízos de mérito (no sentido de saber se o requerente está ou não em situação difícil ou de insolvência eminente, art. 17º-A no 1) como é, aliás, timbre de qualquer despacho liminar.
Porém, como é doutrina que cremos maioritária (como se aceita no acórdão), o juiz já não deve escamotear as questões “incontornáveis”, como sejam “a manifesta a inviabilidade do pedido (p. ex. o devedor apresentou-se à insolvência, ou foi declarado insolvente, ou apresentou-se a um PER que terminou nos dois anos anteriores) (…)” – Maria do Rosário Epifânio, na obra e local referida no acórdão, bem como os demais Autores aí citados.
II. No acórdão equaciona-se como questão a decidir: “saber quais as consequências jurídicas do incumprimento do plano de revitalização aprovado e homologado por sentença transitada em julgado e, conexa com essa, se pode ser desencadeado novo PER para modificar o plano de revitalização aprovado e homologado no âmbito de um anterior, entretanto incumprido ou cujo cumprimento seja inviável”.
E é nesta parte que discordo da tese que fez vencimento, pelas seguintes razões:
1º – Quanto ao segmento “consequências jurídicas do incumprimento do plano de revitalização aprovado e homologado por sentença transitada em julgado”, parece-me que o acórdão não chega a tomar posição, pelo menos quanto às 2 teses que diz em confronto.
Afigura-se-nos que tal questão só em termos mediatos pode ser chamada à colação, eventualmente como argumento interpretativo.
As “consequências do incumprimento” respeitariam ao 2º PER e este ainda não está incumprido (só anunciado), pelo que seria questão a ser despoletada e conhecida nesse outro processo.
2º – Quanto ao segmento “se pode ser desencadeado novo PER, para modificar o plano de revitalização aprovado e homologado no âmbito de um anterior, entretanto incumprido ou cujo cumprimento seja inviável”, também me parece que a questão não se mostra corretamente equacionada.
Com os dados referidos no acórdão, a questão afigura-se-me a seguinte: “quid iuris perante a instauração de um novo PER, estando ainda a decorrer o prazo de vigência de um outro, em que o plano de revitalização foi aprovado e homologado judicialmente?”
Considero que se trata de motivo para indeferimento liminar, pelas seguintes razões, que considero de índole formal.
a) – Concordo que o PER tem natureza híbrida, com uma primeira fase negocial, seguida de uma fase judicial.
Porém, sob pena de desvirtuarmos a teoria geral dos contratos, a classificação dum “plano de recuperação homologado judicialmente” como um contrato já nos oferece as maiores dúvidas.
Na fase de negociação poderá assumir essa natureza, pois estamos no domínio da liberdade individual de aderir ou não às negociações e à proposta apresentada.
Porém, depois de homologado o plano, já adquire a natureza de decisão judicial, e só essa natureza é que legitima o poder de se impor a todos os credores, mesmo aqueles que o não votaram (art. 17º-F no 6), efeito vinculativo que doutra forma seria inadmissível face ao princípio da liberdade contratual relativamente aos credores que nem participaram nas negociações.
A tese pugnada no acórdão duma pura natureza contratual, em que “os contratos podem modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes (artigo 406º, n.o 1 CC)”, abriria a porta a que, na vigência de um PER, pudesse vir um qualquer credor, de acordo com o devedor, dizer que querem modificar uma das condições do contrato na parte que lhe diz respeito, o que se nos afigura inconcebível.
O plano de recuperação envolve necessariamente a articulação de um conjunto de fatores e deve ser visto como um todo. Ele não pode ser visto como uma mera soma de medidas de sustentabilidade da empresa; certamente também muito importante à votação dos credores é o equilíbrio e a interconexão que vêm no tratamento das suas posições relativas. A falha de uma das soluções pode repercutir-se noutras e impedir o sucesso do plano na sua globalidade. Nessa medida, o plano não pode ser homologado só parcialmente (ao jeito da redução dos negócios jurídicos, art. 292º do CC), por exemplo com a desafetação de um dos seus credores ou dele expurgando/alterando apenas algumas cláusulas.
b) – No caso dum plano já homologado judicialmente, acho que já não pode ser modificado, porque está a coberto de uma homologação judicial, que não pode ser alterada por se ter extinguido o poder jurisdicional (art. 613º no 1 CPC)
No 2º PER houve uma homologação judicial do plano.
Ora, perante um 3º PER, o que acontece a essa decisão judicial?
Como qualquer sentença, a homologatória esgota o poder jurisdicional, pelo que a homologação do 2º PER manteria a sua eficácia, com a empresa e credores a ter de observar o respetivo plano.
Com que fundamento jurídico se “encerraria” o 2º PER, sem colidir com esse esgotamento do poder jurisdicional?
Não é perspetivável a vinculação simultânea a dois PER’s.
c) – O legislador não ter previsto a hipótese não é nada de novo nem esta omissão é única. A lei prevê essas situações, mediante as regras da interpretação/integração das leis.
Também nada se diz expressamente sobre quais as consequências do incumprimento dum PER que tenha sido homologado, sendo que a doutrina e os Tribunais tiveram de ir “desbravando” esse terreno e encontrando soluções por recurso a essas regras.
Olhando o instituto do PER no seu conjunto, as suas finalidades, os “princípios orientadores da Resolução do Conselho de Ministros n.o 43/2011, de 23.10.2011 subjacentes ao PER e as constantes referências à insolvência, eu diria que, se se proíbe a instauração de um novo PER antes de decorridos 2 anos de um outro que não tenha sido homologado, por maioria de razão se deve considerar idêntica proibição para instaurar um novo PER, quando ainda existe um outro aprovado e em plena vigência.
d) – A litispendência [art. 577º al. i), 578º, 581º e 582º CPC]
Considerando a «identidade de causa de pedir, como acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito do direito material pretendido» (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil”, vol. 2º, 2ª edição, pág. 352), verifica-se a exceção de litispendência entre o 2º e este 3º PER na medida em que ambos está em causa a “situação económica difícil ou insolvência eminente, mas suscetível de recuperação” (art. 17º-A CIRE), mantendo o 2º a sua vigência e eficácia.
e) – Uso anormal do processo (art. 612º CPC)
Segundo os factos provados, existiu um 1º PER, com aprovação do plano (nada se dizendo se foi ou não cumprido); depois, um 2º PER, com plano homologado em 18.08.2015; um ano volvido (18.08.2016) requer-se este 3º PER “alegando que o cumprimento do plano aprovado e homologado judicialmente no âmbito de um outro PER por si anteriormente requerido se mostra comprometido devido a diversos factores, que discrimina, sendo certo que é ainda possível a sua recuperação”.
A solução pugnada na tese que fez vencimento conduz ao defraudar das regras do processo de insolvência, importando uso indevido do processo: admitindo-se a instauração de sucessivos PER’S (se um 3º, porque não um 4º?), designadamente no período de vigência de um deles, tal conduz a que o devedor nunca tenha de cumprir o dever de se apresentar à insolvência (art. 18º CIRE), coartando também aos seus credores o direito de a requerer, para além de conseguir obstar à instauração de ações para cobrança de dívidas e obter a suspensão das em curso art. 17º-E no 1 e no 6 CIRE) – neste sentido, ainda que a causa se devesse a desistência do anterior PER, acórdão desta Relação de Guimarães, de 25.06.2015 (processo 1315/14.6TBGMR.G1, Relator Heitor Gonçalves), e da Relação de Lisboa, acórdão de 26.02.2005 (processo 1807/14.7TYLSB-A.L1-6, Relatora Anabela Calafate), disponíveis em www.gde.mj.pt.
Isabel Silva (1ª adjunta)