Anda por aí uma argumentação bizantina, segundo a qual, não sendo as ações títulos de crédito, não é possível aos que foram enganados na intermediação que conduziu à sua aquisição, recorrer aos fundos de recuperação de créditos.
Parece-me que essa construção não tem qualquer base legal.
O artº 2º da Lei nº 69/2017, de 11 de agosto dispõe, expressamente, o seguinte:
“A presente lei aplica-se aos fundos que visem a recuperação de créditos detidos por investidores não qualificados emergentes ou relacionados com a subscrição de valores mobiliários representativos de dívida, sujeitos à lei portuguesa, ou comercializados em território português, desde que:
- a) Os instrumentos financeiros em causa tenham sido comercializados por instituição de crédito que posteriormente tenha sido objeto de medidas de resolução, ou por entidades que com esta se encontrassem em relação de domínio ou de grupo;
- b) O emitente dos instrumentos financeiros em causa estivesse insolvente ou em difícil situação financeira à data da comercialização;
- c) A informação referida na alínea anterior não constasse dos documentos informativos disponibilizados aos investidores, ou exista prova da violação dos deveres de intermediação financeira pela entidade comercializadora;
- d) Existam indícios ou outros elementos de acordo com os quais as entidades que comercializaram os instrumentos financeiros em causa possam ser responsabilizadas pela satisfação daqueles créditos.”
O artº 3º define 3º define assim os fundos de recuperação de créditos:
“Entende-se por «fundos de recuperação de créditos» os patrimónios autónomos pertencentes, no regime especial de comunhão regulado na presente lei, a uma pluralidade de pessoas, singulares ou coletivas, e que têm como exclusiva finalidade a aquisição dos créditos a que se refere o artigo anterior, ainda que contingentes ou futuros, com vista a potenciar a sua recuperação e mitigar as perdas sofridas pelos investidores que deles sejam titulares, inclusiva e continuamente, desde a data da medida de resolução aplicada à instituição de crédito em causa.”
Uma coisa é o direito dos acionistas a reclamar créditos de uma instituição financeira que tenha sido resolvida, se o valor dos prejuízos for superior ao capital social. Os acionistas são sócios da entidade insolvente e, por isso mesmo, são os primeiros a responder pela insolvência, na justa medida do capital que for necessário aplicar ao pagamento dos prejuízos.
No caso do BES, sendo o capital social de valor muito superior ao dos prejuízos declarados no balanço aprovado pelo regulador para fundamentar a medida de resolução, é inquestionável que os acionistas respondem apenas na proporção do necessário para cobrir os prejuízos.
Outra coisa bem diversa é o direito a indemnização para ressarcimento dos prejuízos emergentes ou relacionados com a subscrição de valores mobiliários representativos de dívida, sujeitos à lei portuguesa, ou comercializados em território português.
Imaginemos que um investidor não qualificados investiu em ações de um banco resolvido, porque foi aconselhado pelos seus funcionários – ou por um outro intermediário financeiro – com violação das normas que vinculam o exercício da atividade de intermediação financeira.
Se o capital social foi, total ou parcialmente, absorvido pelos prejuízos, não pode o investidor reclamar créditos emergentes das ações representativas do capital social. É o que emerge do disposto no artº 47º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Os titulares de créditos subordinados correm outrossim o risco de nada haverem no quadro do processo de liquidação, por força das mesmas disposições.
Mas tanto uns como outros podem ser titulares do direito a indemnização por violação das normas reguladoras da intermediação financeira, a liquidar em ações a propor contra os intermediários financeiros ou contra os reguladores que tenham falhado a supervisão dessas operações.
Os fundos de que trata a Lei nº 69/2017, de 11 de agosto são, no essencial, constituídos por recursos alocados pelo Estado..
Os participantes cedem os seus créditos ao fundos e recebem ou não um valor, como contrapartida, financiada pelos recursos públicos e títulos de participação nos fundos. O fundo diligencia no sentido da recuperação dos créditos, durante 10 anos, e, a final, paga aos participantes, se lograr cobrar os créditos e de a caça para os galgos.
É inequívoco que os acionistas podem, eles próprios, manifestar-se de forma ruidosa e abrir negociações com o governo e os reguladores para a constituição de um fundo, financiado com dinheiros públicos. Mas acho que não faz nenhum sentido que haja mais do que um fundo por banco resolvido, como vai acontecer.
O que está errado é que o Estado aceite alocar recursos públicos a um fundo e que permita a discriminação de qualquer grupo de investidores não qualificados que tenham sido – igualmente -enganados no momento da intermediação financeira.
Parece-me absolutamente inaceitável que se usem recursos públicos para o ressarcimento de investidores que aplicaram as suas poupanças em ações e obrigações de sociedades estrangeiras – nomeadamente de sociedades de offshore – e que não possam ser usados para o ressarcimento de investidores que adquiriram, nos mesmos balcões, ações de sociedades de direito português, nomeadamente dos bancos resolvidos, com manifesta violação da normas relativas à intermediação de valores mobiliários, nalguns casos por parte dos próprios reguladores e/ou de alguns dignatários do Estado.
O que deve relevar para que se possa recorrer aos fundos de recuperação de créditos é a violação das normas relativas à intermediação financeira. E não há hoje dúvidas de que, tanto no caso BES como no caso BANIF, os investidores não qualificados, foram brutamente enganados pelos bancos mas também pelos reguladores, especialmente pelo Banco de Portugal e pela CMVM.
Por tudo isso, entendo que também os acionistas não qualificados do BES e do BANIF e das empresas que integram os respetivos grupos, desde que tenham sido enganados pelos intermediários financeiros, têm o direito de recorrer às comissões de peritos independentes e de requerer que os seus casos sejam por elas analisados.
O modelo legal dos fundos de recuperação de crédito é, claramente, muito mau, a vários títulos. Sobre isso, escreverei noutro momento.
Os fundos de recuperação de créditos, envolvendo, embora volumosos montantes de recursos públicos, são equiparados aos fundos de investimento de direito privado.
Depois de constituídos, tudo fica na mão da entidade gestora.
O universo dos créditos a ceder ao fundo é definido pela entidade gestora, que tem uma quase ilimitada liberdade para tanto.
Apesar de estarem envolvidos milhões de euros do erário público, podem ser escolhidos – com tem acontecido – apenas os mais ruidosos, como já aconteceu no primeiro fundo, o do papel comercial.
Parece-me que nada justifica que os investidores em ações – tanto os do BES como, principalmente os do BANIF, estes últimos enganados com o argumento de que o investimento em ações era seguríssimo, porque o único acionista era o Estado – devem apresentar reclamações às comissões de peritos independentes, porque foram enganados do mesmo modo, ou de forma mais grosseira que os acionistas.
Se as comissões rejeitarem a sua admissão dentro do perímetro, haverá outras medidas, de natureza judicial, a adotar.
Esta pode ser a última oportunidade para os acionistas do BES e do BANIF.
Lisboa, 5 de maio de 2019
Miguel Reis