Os reguladores suicidas e os perigos do botox financeiro

Como seria de esperar, a “segunda-feira negra” voltou a Wall Street, após a capitulação do banco Lehman Brothers e da corretora Merrill Lynch. O Nasdaq recuou 3,6%, o SP 500 4,7%, e o Dow Jones 4,42% – uma quebra de 504,4 pontos com aterragem forçada nos 10 900 pontos. A pior sessão desde 11 de Setembro de 2001. Ninguém sabe onde o Dow irá parar – 9 000; 8 000; 7 000 – mas a queda será acentuada. Desde meados de 2006, entraram em processo de falência/protecção de credores 283 instituições financeiras, só nos Estados Unidos. Destas, apenas três conseguiram voltar o mercado, após dolorosos processos de reestruturação e de emagrecimento. Contrariamente ao que os números poderão sugerir, a crise hipotecária estadunidense não terminou. Muito pelo contrário. Este mês, entrou noutra fase, mais aguda mas, por estranho que pareça, previsível. Os sinais dos governos, bancos centrais, reguladores, mega bancos e demais decisores, são arrepiantes. Todos, sem excepção, continuam a varrer o lixo para debaixo do tapete. A bolha do sistema financeiro mundial está em marcha. Até quando?

Pressionados pela acção conjunta dos bancos centrais dos Estados Unidos (Fed), Inglaterra (BOE) e da Zona Euro (BCE), 10 pesos-pesados da alta finança criaram um fundo de emergência – USD 70 mil milhões/bilhões (mm/bi) – para suster a avalanche de insolvências no sector. A pool integra J. P. Morgan, Goldman Sachs, Bank of America, Citigroup, Merrill Lynch, Morgan Stanley (EUA), Barclays (Grã-Bretanha), Deutsche Bank (Alemanha), Credit Suisse e UBS (Suíça). O fundo destina-se primeiramente a ajudar os participantes, alguns já em dificuldades, a fazer frente às ameaças que se anunciam. Merryl Lynch e Citigroup estão fortemente expostos à crise subprime, tal como as corretoras Morgan Stanley e Goldman Sachs. Será que o capital arregimentado à pressa chega para impedir o tsunami?

As soluções propostas pelas superestruturas do poder financeiro global estão inquinadas. Os bancos centrais voltaram a imprimir notas e a inundar os mercados com liquidez fictícia. Pior. Passaram a aceitar créditos de má qualidade como garantia de empréstimos a instituições doentes e descapitalizadas, com os balanços entupidos de activos sobreavaliados e não amortizados. Os bancos centrais adoptaram uma estratégia suicida ao abandonarem as regras prudenciais vigentes. Os banqueiros privados seguem o modelo. Entre eles, o mais temerário é o Bank of America (BofA). Após ter “salvo” a falida Countrywide, em Julho, o BofA comprou agora todo o lixo tóxico da carteira Merrill Lynch por USD 50 mm/bi (EUR 35 mm/bi). O BofA terá arcaboiço para aguentar os embates que se avizinham?

Em apenas um ano, o sector financeiro amortizou globalmente prejuízos da ordem dos USD 600 mm/bi resultantes de créditos de alto risco. Estimativas conservadoras calculam o valor global do buraco hipotecário em USD 2 mil biliões/trilhões (mibi/tri).

A crise, por ser sistémica, promete agudizar-se nos próximos 2/3 anos e contaminar ainda mais outros segmentos críticos do mercado da dívida – derivativos, crédito ao consumo, seguros de crédito, entre outros. Na primeira linha das preocupações está o importante segmento ABS – Asset Backed Securities uma das causas da implosão do Lehman Brothers. Este mercado secou gradualmente, desde 2007. Não se encontram compradores facilmente dado que o apetite dos investidores pelo risco sofreu uma quebra dramática. À medida que as semanas passam, as instituições são forçadas a reavaliar os activos problemáticos e diariamente desvalorizados. Os prejuízos prometem galgar para níveis estratosféricos face ao risco de o mercado ser inundado pelo “lixo tóxico” que enche as carteiras de investimento do Lehman Brothers e de outras instituições, em particular dos hedge funds. Pressionados pelo vencimento das dívidas de má qualidade, os gestores da falência Lehman Brothers vão inundar os mercados com USD 600 mm/bi de títulos a preços de liquidação. A pressão da venda vai desencadear uma reacção em cadeia – queda de preços, agravamento dos prejuízos contabilizados, desvalorização das acções e dos índices bolsistas – e agravará o clima recessivo. A situação é dificilmente reversível face à estrutura virtual da economia global. Todavia, é perceptível analisando o rácio PIB Mundial/ Liquidez Global em função dos instrumentos financeiros disponíveis, quantificados com recurso aos dados do Banco Internacional de Pagamentos (BIS, em inglês), referentes a Dezembro de 2007:

PIB Mundial

Instrumentos Liquidez Global
802% Derivativos 75%
142% Dívida securitizada 13%
122% M3 11%
10% Numerário 1%

Os derivativos de crédito excedem em 8 vezes o PIB Mundial e correspondem a 3/4 da liquidez global. O agregado da massa monetária em circulação (depósitos bancários à ordem, a prazo, acções, obrigações e outros activos em papel) é pouco mais do dobro do PIB mundial e representa escassos 11% da liquidez global. Os derivativos de crédito ou “produtos estruturados” oferecem uma míriade de instrumentos alegadamente “disseminadores do risco”. Eles são os tumores malignos que afectam a saúde do sistema financeiro global. O seu falacioso “risco zero” transformou o mercado num gigantesco casino onde, até 2007, ninguém prestava contas a ninguém. Grandes investidores públicos e privados – governos, autarquias, fundos de pensões, fundos soberanos, hedge funds, seguradoras, bancos, etc. – entraram no opaco mercado. Quando a bolha hipotecária explodiu os bancos centrais deram-lhe injecções financeiras de botox. Nos mercados de capitais e da dívida as operações de cosmética, a prazo, estão condenadas ao fracasso.

MRA, Dep. Data Mining

Pedro Varanda de Castro, Consultor

P.S.: Estes são alguns dos ângulos possíveis de análise. Mas há mais. Em breve, voltaremos ao assunto.

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