Enquanto a media global nos empaturrava com notícias das guerras no Médio Oriente, Cáucaso e Ásia Central, outra, surda e secreta, mas igualmente de capital importância geopolítica e geoestratégica – a desestabilização da América do Sul – já estava em marcha. Tal como no Afeganistão, Iraque e Geórgia, a reconquista da influência das multinacionais norte-americanas e europeias no Cone Sul é de crucial importância para os poderes globais – EUA, Rússia, China e União Europeia (o elo político-militar mais fraco da cadeia). Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando são regiões bolivianas. No léxico industrial-militar ocidental são sinónimos de Kandahar, Faluja, Mosul ou Tskhinvali. Em qualquer deles, militares e diplomatas do Arco Atlântico usam a “Guerra contra o Terror” e a “Guerra contra a Droga” como justificação para invasões, ocupações militares e operações clandestinas. Na região andina o cenário é idêntico. Convencidos de que ganhavam rapidamente as guerras no Afeganistão e no Iraque, EUA e NATO mobilizaram para ali todos os recursos “pesados”. Os países sul-americanos levaram as sobras – algum dinheiro, agentes secretos e conselheiros militares. A versão “soft” da pressão político-militar ocidental está agora a dar os seus frutos.
O Governo da Bolívia confirmou esta semana a morte de 16 pessoas nos confrontos armados ocorridos em Pando, norte do país, entre partidários do governo (Collas) e militantes da oposição (Cambas) que querem impedir a nova Constituição, proposta por Morales. As regiões rebeldes da parte oriental do país, habitadas maioritariamente por cidadãos de origem europeia ou mestiços, opõem-se à redistribuição das riquezas naturais pelas pobres comunidades índias dos Andes. Nos últimos dias, as tensões diplomáticas agudizaram-se. A Bolívia e a Venezuela expulsaram os embaixadores dos EUA em La Paz e Caracas. Em retaliação, Washington, para além da expulsão do embaixador venezuelano, impôs sanções contra dois altos responsáveis dos serviços secretos e um ex-ministro da Venezuela sob a acusação de “ajuda material às FARC no tráfico de droga”. Nas últimas semanas, o embaixador Patrick Duddy, agora “persona non grata” na Venezuela, irritara o presidente Hugo Chávez ao criticar a falta de cooperação do regime bolivariano na luta anti-droga. Os EUA ripostaram com o “combate ao narcotráfico” e às “actividades terroristas”, metendo no mesmo saco as “FARC”, da Colômbia, e os movimentos índios que defendem a soberania dos seus países contra a ingerência ocidental. Morales e Chávez foram eleitos democraticamente. As eleições foram sufragadas pela ONU. Tal como na Palestina, onde o Hamas conquistou o poder após um processo eleitoral julgado por observadores ocidentais como “livre e justo”, os eleitores bolivianos e venezuelanos foram penalizados por votar contra os interesses americanos e europeus. Os collas bolivianos são etiquetados como os talibã da América Latina. Em cada teatro de guerra, EUA e NATO dispõem de aliados estratégicos – Colômbia, Paquistão, Israel e Geórgia. O correspondente do semanário alemão “Der Spiegel“, Jens Glüsing, analisou desta forma a tensão na Bolívia: “O próprio presidente [Morales] agudizou desnecessariamente a crise quando expulsou o embaixador americano do país [Bolívia]. Claro que os americanos não morrem de amores pelo ‘presidente índio’, claro que o embaixador dos EUA, Philipp Goldberg, foi imprudente quando na semana passada se encontrou com o governador da província rebelde de Santa Cruz. Porém, Washington não é o causador do conflito boliviano. A causa é interna. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, interfere de forma muito mais forte nos assuntos internos da Bolívia. Ele financia o seu protegido Morales. Com a sua estratégia de envolvimento, Chávez empurrou o inexperiente presidente-índio para uma confrontação inútil com os ‘porcos-ianques’, como lhes chamou na quinta-feira.” O articulista alemão, que considerou uma provocação a Venezuela ter autorizado o estacionamento de vasos de guerra russos nos portos do país, apontou “o único líder” regional que “pode fazer frente” a Chávez: Luís Inácio Lula da Silva – e tomou como seus os prognósticos dos think tanks americanos AEI e CFR: “Caso Lula não consiga neutralizar o barril de pólvora na Bolívia, terá de enfrentar outros conflitos. Então, morrerá definitivamente o seu sonho de uma América do Sul unida.”
O embaixador Goldberg, antes de ocupar o cargo em La Paz, foi o representante diplomático dos Estados Unidos no Kosovo, província que se separou da Sérvia com o apoio de Washington, da NATO e de boa parte dos 27 estados membros da UE. Em Outubro de 2006, quando apresentou credenciais ao “presidente-índio”, alguns observadores prognosticaram que iria aplicar a experiência separatista nos Balcãs e preparar o terreno para uma situação idêntica na Bolívia. Estes factos não merecem destaque nas análises dos comentadores alinhados com a lógica geopolítica do eixo Washington-Bruxelas. Este mês reforçaram os alertas sobre os perigos das estratégias da Rússia, da China e do Irão, no continente americano: “Enquanto a Rússia recupera a esfera de influência no seu quintal [Ásia Central], via rearmamento nuclear, o Irão islâmico está a intervir amplamente no quintal da América. Cumprindo a promessa de reforçar o protagonismo na América Latina, o Irão estende a mão aos governos esquerdistas na Bolívia, Venezuela e Nicarágua. Analistas receiam que o Irão possa usar aqueles laços para a introdução clandestina nos Estados Unidos de terroristas e armas de destruição maciça. O presidente venezuelano Hugo Chávez, um inimigo fanático dos EUA, é apontado como o promotor da aliança latino-iraniana. O presidente boliviano Evo Morales está a reforçá-la. Ele aterrou em Teerão na segunda-feira [01-09-2008] para uma visita de dois dias no seguimento da visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad à Bolívia, em 2007, durante a qual prometeu a ajuda de USD 1 000 milhões/1 bilhão à nação andina.”
Está recriado o “Eixo do Mal”. A demonização dos regimes contrários aos interesses estratégicos do Ocidente em geral, e dos EUA em particular, faz parte dos cenários que antecipam o ciclo pós Bush/Cheney nas Américas. Não importa quem será o próximo presidente estadunidense. O democrata Barack Obama ou o republicano John McCain cumprirão a agenda estabelecida pelos financiadores das suas campanhas eleitorais. O CIM/Complexo Industrial-Militar forneceu antecipadamente os cenários dos próximos capítulos através de um obscuro general da secreta militar dos EUA. Uma intervenção militar na Amazónia, nos próximos 4 ou 8 anos, não está excluída dos programas do Pentágono. As mudanças de poder na América Latina puseram em risco o domínio continental do Tio Sam e tornaram menos fácil o livre acesso às matérias-primas que abundam em diversos países – da Nicarágua ao Chile, da Venezuela à Argentina, passando pelo Equador, Bolívia, Peru, Paraguai e, incontornavelmente, pelo Brasil – putativo membro da OPEP na região. Os movimentos sindicais e organizações de camponeses – Cocaleros (Bolívia) e CONAIE (Equador) – são colocados no mesmo plano das guerrilhas paramilitares anti-americanas – Zapatistas (México), FARC (Colômbia).
A história recente das ligações da CIA aos cartéis da droga latino-americanos faz temer o pior. O caldo político-ideológico esbate as questões sociais e releva os fenómenos do terrorismo e do narcotráfico, ambos apresentados como causas de possíveis intervenções militares. Rotulados de “ameaça à segurança nacional” dos EUA, Zapatistas e FARC, tal como os Talibã e a Al Qaeda, ajudam a neutralizar politicamente a revolta das populações indígenas. Ambos são úteis cortinas de fumo para iludir as manobras secretas de Washington e Bruxelas. Desde 2001, o governo Bush/Cheney canalizou USD 20 milhões para apoio aos movimentos anti-Chávez através do National Endowment for Democracy e da USAID/United States Agency for International Development. Durante o consulado Bush/Cheney o apoio financeiro à oposição venezuelana aumentou 400%. Duddy ocupou vários postos diplomáticos na região antes de assumir o cargo em Caracas – Chile, República Dominicana, Costa Rica, Panama e Paraguai. Em 2002, como Cônsul Geral em La Paz, foi decisivo no incremento da presença militar americana na Bolívia, ao abrigo do acordo para a erradicação de plantações de coca. Como subsecretário para o Brasil, Cone Sul e Caraíbas desempenhou um papel importante nas eleições de 2005, no Haiti, após o derrube do presidente Jean-Bertrand Aristide, através de um golpe de estado patrocinado pelos EUA. Na Bolívia, cabe ao embaixador americano, e ao chefe local das operações da CIA, a coordenação dos fundos do Pentágono, das fundações e dos think tanks para apoio aos aliados da “Nação Camba”, no leste do país. Nas suas províncias estão localizadas as maiores reservas de gás natural. As operações clandestinas são executadas pelos “camba” na metade ocidental da Bolívia – La Paz, Chuquisaca, Potosí, Oruro e Cochabamba – contra os “colla”, aliados de Morales, que recusam a autonomia e a divisão político-administrativa do país. Os governadores e as populações rebeldes estão dispostos a paralisar a acção do governo até às eleições presidenciais de 2010. As lições da Bolívia deverão servir de exemplo aos países vizinhos. Mesmo aos politicamente mais moderados. Como o Brasil. Quando chegar a altura de avaliar o acesso a recursos energéticos e alimentares – bem como às ricas reservas de água potável da região – não faltarão bodes expiatórios para justificar o congelamento de processos democráticos. As areias movediças da Guerra-Fria XXI irão tragar novas vítimas.
MRA Dep. Data Mining
Pedro Varanda de Castro, Consultor
P.S.: Neste contexto será útil revisitar o histórico dos serviços secretos americanos na região através de vídeos disponibilizados no YouTube.
CIA I (ex-agentes revelam segredos; 6 videoclips)
CIA II (Bolivia/Che Guevara)
CIA III (Nicarágua)
CIA I (Venezuela/Chávez; 6 videoclips)